É simplesmente impossível contar, aqui nesse espaço, tudo que pude ver na edição 2015 do Cannes Lions. Pelo menos, é impossível contar tudo sem escrever 200 laudas. Mas posso dizer, resumindo, que praticamente todos os palestrantes (clientes, agências, analistas de mercado, tech nerds, bilionários do Vale do Silício, startups, cineastas, investidores, jornalistas, celebridades e, acreditem, até um robô) falaram sobre propósito de marca.
Claro que nada disso é novidade. Já faz tempo que o propósito das marcas tem sido amplamente discutido em todos os níveis de lideranças corporativas. E engana-se quem acha que ele é sinônimo de responsabilidade social. Propósito é algo que vai muito além e define a razão de ser de uma marca.
Pense no lugar onde você trabalha, seja você dono ou empregado. Agora pergunte a si mesmo que falta esta empresa faria para o mundo se acabasse hoje. Um propósito bem construído responde a esta pergunta em 3 segundos.
Chega de teoria. Um dos pontos mais interessantes do festival foi o caloroso debate entre o ex-vice-presidente americano Al Gore e o chairman da WPP, Martin Sorrell. Ao longo de aproximadamente 40 minutos, o britânico metralhou Al Gore com perguntas delicadas e quase sem tempo para resposta. Era questionamento atrás de questionamento sobre ética, negócios, política, dinheiro, Steve Jobs, tecnologia e, claro, meio ambiente. Sempre com um tom de ironia que divertia e excitava a plateia.
Mas, se alguém achava que ia pintar climão naquele debate, enganou-se. Isso só aconteceu na palestra seguinte, quando Scot Keith e Bryan Collins, fundadores da One Twenty Three West, uma agência independente do Canadá, subiram no palco para falar sobre os desafios de abrir o próprio negócio. Logo no começo da apresentação, Scot estampou uma foto gigantesca de Martin Sorrell no telão e perguntou: “como confiar em um mercado onde o seu chairman ganhou 67 milhões em um ano e você não tem aumento há dois?”.
Jamais saberemos se essa parte do show sempre esteve ali ou se eles aproveitaram para polemizar, na última hora, ao saber que a palestra anterior era do todo poderoso da WPP. O fato é que rolou uma reflexão no auditório. O mesmo tipo de reflexão que, em proporções bem maiores, as pessoas fazem quando percebem que as marcas que consomem não estão alinhando discursos e práticas.
Vivemos uma era em que está todo mundo exposto: marcas, pessoas, empresas, países, cidades, organizações e governos. Literalmente, todo mundo. E, em um cenário assim, quem diz uma coisa e faz outra pode ser expulso do jogo. No mínimo dos mínimos, vai ser muito xingado no Twitter.
O pequeno mal-estar gerado com a provocação ao Sorrell provavelmente não terá efeito algum sobre o mercado publicitário e suas políticas salariais. Mas prova que hoje em dia não tem mesmo para onde correr: você sempre será questionado, independentemente do seu tamanho, valor de mercado, volume de vendas ou influência política.
Se, por um lado, muitos enxergam esse contexto como um perigoso campo minado, as marcas realmente transparentes (ou dispostas a assumirem esse desafio) mergulham de cabeça e ganham cada vez mais espaço. Não precisa nem olhar para fora do Brasil para perceber isso. As empresas que se saem melhor são as que sabem levar na esportiva e reconhecer suas fraquezas antes de reprogramar a rota.
É o caso do Spoleto rindo de si mesmo, há uns dois anos, no compartilhadíssimo filme do Porta dos Fundos. Ou do Itaú ao reposicionar seu título de capitalização, o PIC, passando a vendê-lo como produto de sorte – e não mais como investimento. Quando um discurso verdadeiro se alinha com a razão de ser de uma marca, tudo faz sentido.
Voltando ao caso do Itaú, que tem como propósito transformar para melhor a vida das pessoas. Não faz total sentido desenvolver produtos e serviços que melhorem a relação do brasileiro com o dinheiro? Sim. Por isso, o reposicionamento do PIC.
No debate com Sorrell, um dos momentos mais engraçados aconteceu quando Al Gore interrompeu o colega e falou, enérgico: “adoro o jeito como você pula de uma pergunta para outra sem me deixar responder. Me deixa terminar!”. A plateia caiu na gargalhada porque foi o momento mais humano daquela conversa. Humano, real, sujeito ao erro: exatamente os mesmos atributos que fazem com que as pessoas respeitem, admirem e virem fãs das marcas.
Airbnb, Uber e Buycott são apenas alguns exemplos de marcas que já nasceram com propósitos extremamente desenvolvidos. Não por acaso, incomodam indústrias de gigantes. A grande dificuldade para os veteranos, como o setor hoteleiro, é que as marcas que conseguem transformar propósito em relevância para o mundo (mesmo as que nasceram há pouquíssimo tempo) têm o aval do consumidor. E mais: conversam com ele como muitos mercados jamais fizeram antes.
Ao longo de seis dias intensos de festival, muita gente abordou o principal desafio de hoje na vida das empresas: o fato de que as pessoas querem se conectar com os valores mais profundos de uma marca e não apenas com o que elas vendem. E aí, meu amigo, marcas que dizem uma coisa e fazem outra, além das que se recusam a estabelecer diálogos, estão fora do jogo.
Isso vale para todos e é preciso estar preparado para os questionamentos. Acredite: eles serão muitos.
O próprio Scot Keith passou por isso, segundos depois de expor a tal imagem gigante do Martin Sorrell em sua palestra. Um homem aparentemente irritado gritou da plateia algo como: “O Sorrell vale muito mais que 67 milhões!”. Scot, visivelmente sem graça, retrucou: “Você é agente dele?”. Ali, naquele momento, eu e mais umas centenas de pessoas presenciamos um pequeno retrato do que é a vida real hoje em dia: todas as conversas são de mão dupla, ao vivo, na frente de quem for. E a saia justa pode estar escondida em qualquer lugar. Esteja preparado.